Intervenção do Presidente do Governo
Presidência do Governo Regional
Texto integral da intervenção do Presidente do Governo, José Manuel Bolieiro, proferida hoje, em Ponta Delgada, na abertura das VII Jornadas Açorianas de Direito – “Liberdade de Expressão”:
“As Jornadas Açorianas de Direito vão já na sua sétima edição.
E que sucesso essa consistência representa! Que, aliás, enalteço, com enorme satisfação.
O seu percurso, edição após edição, granjeou-lhe prestígio próprio, reconhecimento e boa adesão.
Também assegurou consistência e isso elevou e eleva o bom nome dos Açores - lugar de eleição para a realização destes eventos de intelectualidade, partilha de saberes e de experiências.
A Região Autónoma dos Açores, através do Governo Regional, louva este Fórum criado, e, como Presidente do Governo, expresso aqui congratulação pelo empreendimento dos seus fautores, que se revelam com enorme capacidade de iniciativa e pioneiros destemidos na reflexão crítica, que propõem.
Estas jornadas açorianas de direito são, inequivocamente, uma referência na reflexão e no pensamento jurídico e jurídico-político do país, a partir dos Açores, numa organização de Magistrados Judiciais, que desempenham funções na comarca dos Açores.
Nesta sessão de abertura da sétima edição, e bem sabemos que o número sete representa a busca por conhecimento, deixo aqui registado especial expectativa nas palestras previstas, com oradores de excelência.
Na pessoa da Dr.ª Sónia Braga, em representação da Comissão Organizadora, saúdo todos os organizadores responsáveis por esta sétima edição, pela determinação e empenho na sua realização, desejando que estes dias de trabalhos propiciem uma reflexão serena sobre o temário concreto – “Liberdade de Expressão”, e sobre o seu impacto em geral nos direitos, liberdades e garantias, matriciais num Estado de Direito Democrático.
Saúdo auditores, conferencistas, magistrados, advogados, juristas, docentes universitários, profissionais de outras áreas do conhecimento, vindos do território nacional continental, que se deslocaram aos Açores, para participarem nestas Jornadas.
A todos e a cada um desejo que possam contactar mais de perto com a realidade cultural, social, económica e política dos Açores e também, já agora, com o Direito regional autónomo, se for o caso.
O tema da “liberdade de expressão” temário destas Jornadas não pode ser mais atual, num tempo em que a verdadeira liberdade de expressão e outras liberdades são agredidas, limitadas e postas em causa, em momentos de instabilidade social e política, com algum direito constitucional a legitimar autocracias, através de alterações constitucionais que David Landau designa como “constitucionalismo abusivo”.
Não sendo especialista no temário das jornadas, nem tendo qualquer intervenção legislativa no domínio dos direitos, liberdades e garantias ou mesmo da justiça, em geral, reduzo as minhas referências ao meu entendimento de que urge questionar sobre os meios adequados para a promoção de uma cultura geral pela ética e por exigências várias de dignidade.
Estas jornadas e temário são já um contributo.
Sendo realizadas nos Açores cumprem uma tradição. Aliás, é histórico, é secular.
Se não vejamos:
Nos Açores, ao longo de vários ciclos, distintos portugueses açorianos deram ao País expressão da dimensão e excelência intelectual, do pensamento político e legislativo, que impactaram em reformas e mudanças aos anacrónicos status quo de cada ciclo, quanto aos regimes e governações.
Evoco, selecionando apenas alguns factos e atores mais icónicos das mudanças promovidas em Portugal.
A transição do Portugal do absolutismo para o do liberalismo foi realizada a partir dos Açores, durante a guerra civil portuguesa (1828-1834). Foi com a sua vitória que D. Pedro IV organizou o governo liberal e uma série de reformas, destacando-se a atividade legislativa de Mouzinho da Silveira, que modernizou a administração, a justiça e fiscalidade, bases para o futuro Portugal Constitucional.
E tudo começou com a vitória liberal obtida no combate da “Ladeira Velha, em São Miguel, em 1831, sendo daí a partida e desembarque no Mindelo, em 1832. Os bravos do Mindelo alcançaram então a viragem na guerra civil e com a vitória implantou-se o regime constitucional em Portugal.
E foi também um açoriano que, neste período monárquico, se fez uma figura política e governativa relevante, falo de Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro.
Foi Presidente do Conselho de Ministros e responsável por reformas estruturantes.
Destaco, sob a sua liderança, as reformas eleitorais e administrativas, a das alfândegas e serviços aduaneiros, o regime florestal e de farmácias, e de liberdade de imprensa primeiro e depois da imposta restrição à imprensa com repressão anarquista.
Já agora, também responsável pela atribuição de autonomia administrativa dos Açores.
E foi com a liderança de outro açoriano, Antero de Quental, que a ínclita geração de 70 revolucionou, novamente, a cultura, a literatura e a política em Portugal.
Esta geração incluiu, além de Antero de Quental, entre outros, Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro e ainda outro açoriano, Teófilo Braga.
O grupo teve grande impacto no pensamento político, que começou a defender ideias republicanas e democráticas, tendo sido motor de mudança na sociedade portuguesa no final do século XIX.
Creio que é consensual o entendimento de que foi, à data, uma geração responsável pelo consequente movimento de modernização cultural e política de Portugal, preparando terreno para a implantação da República.
E eis que a transição da Monarquia para a República em Portugal se concretizou nos primeiros anos com dois açorianos.
Novamente, Teófilo Braga, primeiro chefe de Estado do regime republicano (acumulando com a chefia do governo) e Manuel Arriaga, este o primeiro Presidente Constitucional, de 1911 a 1915.
Passando, sem evocação, por outras referências factuais e de personalidades no combate à ditadura e conquista do regime democrático, sinalizo apenas a açoriana Natália Correia, para assim não politizar esta intervenção, por referência a atores atuais.
Natália Correia destacou-se pela sua postura crítica, mesmo transgressora e inovadora, sendo hoje comummente reconhecida no ambiente intelectual como voz liderante na defesa da liberdade, da condição feminina e da identidade cultural nacional.
Tudo isso, sumariado, é inspirador e motivante para mim, que, com orgulho, afirmo que nos Açores e com açorianos, Portugal fez-se em constante reflexão e ação críticas, sendo fértil em mudanças, que afinal são o que há de mais constante na vida.
Flanqueei a abordagem concreta do temário das jornadas.
Foi de propósito, como aliás antes disse. Não sou especialista, nem se espera de mim, nesta sessão de abertura, lição sobre a matéria.
Apenas direi, a encerrar a intervenção, e sob a forma interrogativa, que, mais uma vez, tal como a história e os diferentes ciclos nos ensinaram, vale a pena ser crítico na reflexão sobre o temário das jornadas, e isto, como diria Fernando Pessoa, “se a alma não é pequena”.
E a partir dos Açores, com a vossa capacidade intelectual, científica e profissional, podemos estimar conclusões desafiantes.
A evolução das sociedades e das formas de comunicação é cada vez mais estonteante.
Há cada vez mais comunicação desmaterializada, através das redes sociais, do recurso à inteligência artificial e através da geração de conteúdos falsos e de “fake news”, que rapidamente se tornam virais à escala global, colocando a liberdade de expressão sob “stress”, pois, a coberto de ferramentas informáticas indetetáveis, é possível dizer tudo de todos, especialmente de figuras públicas, e com abrangência global.
A tentação de muitos – que rejeito – é a de limitar a liberdade de expressão, como forma de policiar a opinião, a que se seguiriam, inevitavelmente, outras formas sofisticadas de cercear a livre expressão.
Porém, estamos todos confrontados com graves deturpações da verdade e das decisões, que rapidamente são tomadas como novas verdades. (Pós verdades).
Não há democracia sem liberdade de expressão e sem liberdade de imprensa. É através delas que as pessoas podem questionar o status quo, expressar descontentamento, defender causas, ou simplesmente compartilhar as suas visões de mundo.
Mas a era digital veio trazer um novo paradigma e transformou profundamente as relações sociais e comunicacionais, impactando as indústrias culturais e criativas e alterando a forma como o conteúdo é produzido, distribuído e consumido.
Esta evolução, embora nos ofereça novas e significativas oportunidades para a comunicação, apresenta simultaneamente desafios consideráveis aos processos democráticos, com um aumento constante da desinformação, manipulação e discurso de ódio e atentados à honra no ecossistema digital.
A população encontra-se atualmente inundada por um volume massivo de informação, o que dificulta a compreensão de algumas notícias, a identificação de fontes fidedignas e o acesso ao conteúdo de qualidade.
A nossa Constituição é inequívoca: o direito a informar e a ser informado, com rigor, não é uma mera formalidade, mas sim um espírito constitucional que exige uma perícia doutrinária capaz de identificar qualquer desvio como uma rutura com o Estado de Direito.
Compreender o papel da liberdade de imprensa e da liberdade de informação no século XXI exige um olhar atento às teorias da comunicação e às suas evoluções.
São pertinentes várias questões.
O advento da internet e das redes sociais trouxe ou não uma revolução sísmica, alterando radicalmente a dinâmica da comunicação e, com ela, as tendências de interação social e política?
As teorias da comunicação do século XXI aproximam-se, ou não, de modelos mais sistémicos e complexos, onde a informação não é apenas difundida, mas também cocriada, filtrada por algoritmos e consumida em bolhas de informação?
Neste novo ecossistema, o papel da liberdade de imprensa e da liberdade de informação enfrenta ou não desafios inovadores?
Será que neste cenário o populismo e a desinformação encontram terreno fértil?
Será que os modelos populistas capitalizam sobre estas novas dinâmicas comunicacionais?
Será que projetos políticos as utilizam para ultrapassar a imprensa tradicional, comunicando diretamente com os eleitores através das redes sociais, contornando o escrutínio jornalístico e os gatekeepers da informação?
Será que explorando algoritmos de polarização as plataformas digitais tendem a recompensar o conteúdo mais interativo e emocional, para assim amplificarem desinformação e divisões?
Será que se utiliza a desinformação como arma política, criando e disseminando intencionalmente notícias falsas para atacar adversários, manipular perceções e deslegitimar processos democráticos?
Será que estes cenários não exigem que as teorias da comunicação se adaptem e que o quadro jurídico se transforme para responder de forma eficaz?
Será que as liberdades de imprensa e de informação, que outrora eram o escudo contra a tirania, tornaram-se agora também um campo de batalha onde a verdade é disputada e a desinformação é uma ferramenta poderosa?
São questões complexas e que demandam porventura respostas ainda mais complexas.
Nada está fácil de interpretar e de decidir.
Os perfis falsos, operando no anonimato e muitas vezes de forma coordenada, serão veículos de propagação de narrativas distorcidas, meias-verdades e mentiras descaradas e visam manipular a opinião pública, influenciando eleições, referendos e plebiscitos, e polarizando o debate social.
Tudo isso, além de complexo, é preocupante. Parece-nos uma conclusão razoável.
É, pois, urgente refletir sobre esta complexidade sistémica e ponderar se será necessário ou não que se tomem medidas eficazes.
O que sabemos é que a União Europeia tem respondido com quadros regulatórios como o Digital Services Act (DSA) e o European Media Freedom Act (EMFA), como o Código de Conduta sobre Desinformação.
A credibilidade da informação, a literacia da comunicação e a dignidade de cada cidadão merecem proteção.
Isso parece-nos óbvio.
Bem hajam por mais esta realização das jornadas açorianas de direito. Obrigado pelo generoso e competente contributo de cada um. Quem sabe se daqui não sai mais um ciclo histórico disruptivo. Exorto os organizadores a continuarem com as jornadas e sempre realizadas aqui nos Açores.
Disse!
Muito obrigado pela atenção”.